quarta-feira, 30 de março de 2011

Negro diáfano

A noite estava incrivelmente fria para aquela época do ano. Parada sob um luminoso antigo, ela esperava. Incansalvelmente, irrealisticamente, ela esperava. Uma sombra em negro com relances diáfanos. Imutável como o tempo. Ao longe as pessoas, distraídas, nem se davam conta de mais aquela sombra, dentre tantas projetadas pelos prédios e casas ao longo da avenida.

Ela sorriu. Amava a rua, com suas incongruências e tipos escalafobéticos. Não havia melhor lugar. Mesmo com as gotas de chuva que caiam ao seu redor, ela não trocaria sua liberdade por uma prisão confortável, estéril.

Resolveu sair de seu ponto seguro, mas ainda nas sombras, só que dessa vez, nas das árvores centenárias que ladeavam a rua.

À medida que seguia seu passo morno, ouviu ao longe uma melodia e o vento lhe trouxe as palavras:

"Pour un peu de toi je pars sans hésiter
Tout au bout du monde sur le toit au sommet
Marks your path with scattered seeds beneath the opal stars,
Sur ton chemin
But in the crowd there's only one beneath the opal stars,
Sur ton chemin

Le long de tes reins"


A voz suave e a cadência ritmada a empurraram na direção da melodia. Chegando em um rua sem saída, em seu final, uma singela casa se destacava, em meio a tantas cinzentas e desbotadas, pela luminosidade das velas no parapeito da janela. O alegre fogo-fátuo projetava desenhos divertidos no mundo ao seu redor.

A melodia estava cada vez mais nítida, bem como a voz que trespassava a alvenaria daquele pequeno mundo à parte. A atração era inequívoca. Era preciso chegar mais perto, permitir-se alcançar os pequenos cristais de luz, afastar as sombras.

Ainda cautelosa ela chegou à porta, que estava entreaberta, como se a esperar o amante há muito perdido. Seu coração deu um pequeno pulo. Do outro lado, um homem descansava em uma cadeira, de frente ao fogo de uma lareira. Sua cabeça estava inclinada na direção da porta e ele contemplava o fogo tristemente. Sua face mostrava as linhas de uma vida vivida. Sua barba era mareada de espumas brancas   dos mares ocidentais, nos períodos abissais do verão. Suas mãos haviam conhecido muitas demandas, mas guardavam a beleza dos tempos outonais.

Lentamente, ela se aproximou. O barulho era seu inimigo. Ele a denunciaria e ela seria expulsa de volta para as sombras, que até instantes atrás haviam sido suas amigas. Tentou aproximar-se. Tentou existir fora daquele lugar cinzento em que sempre vivera. Tensamente chegou mais perto da cadeira e da mão que havia conhecido muitas demandas, mas guardavam a beleza de tempos outonais. Quando estava quase alcaçando, seu passo perdeu sua leveza de ladrão e ele a viu.

Levantou-se. Estendeu seu pedaço de outono em sua direção e sorrateiramente, aproximou-se. Duvidou. Procurou uma maneira de alcançá-la. Procurou por seus olhos. Um relance verde encontrando um relance negro. Sorriram. Ele abriu os braços em sua direção.

E em apenas um instante, o Tempo, senhor de todas as coisas acabou com a solidão.

4 comentários:

  1. Quase se pode sentir tudo que acontece. É uma leitura enlevante, mesmo que eu não consiga dizer exatamente o que seja isso rsrsrsr. Eu achei lindo!

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  2. É moça, o negócio tá bom, hein?! Espero que de onde saiu esse venha mais. Se eu lesse um trecho assim na livraria, compraria o livro pra saber o que iria acontecer!
    Adorei o clima que você criou.

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  3. Hmmm....nem sei, não sei julgar, não sei dizer....só sei que me lembrou Edith Piaf, em sua fase mais miserável, solitária e jovem....
    O texto anterior, sobre a Karynk, esse sim me fez pensar...e uma coisa eu sei: são essas as pessoas mais importantes em nossas vidas...essas que chegam sem avisar, entram sem permissão, ficam sem serem convidadas e permanecem sem prazo de validade....é disso que a vida é feita, pra isso que tem que ser vivida...por amor.
    E Dani-se quem diz o contrário!

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  4. Lindo o seu conto.Ele descreve nos seus mínimos detalhes o sentimento humano despojado.Parabéns!

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